quinta-feira, 28 de maio de 2009

A soma dos dias

Escrever mantém minhas lembranças frescas. A frase não é minha. É de Isabel Allende, escritora chilena e autora de fantásticos romances repletos de emoção e inspiração, como Paula e A Casa dos Espíritos. Mas é que penso exatamente assim: escrever é mais que ofício, mais que prazer. É contar para mim mesmo, a cada dia, uma nova versão das minhas novas e velhas histórias.

Como toda mulher latina, Isabel Allende traz em seus textos e histórias a alma da guerreira amante e maternal, a proteger seu ninho e amores acima de qualquer dor. Isabel tem uma história de vida repleta de aventuras e marcas. Sobrinha de Salvador Allende, presidente deposto e assassinado pelo golpe militar comandado por Augusto Pinochet, exilou-se com o primeiro marido e os dois filhos na Venezuela. Lá trabalhou como jornalista, aventurou-se no delirante mundo das palavras sob a forma de romance e virou a escritora de grande sucesso. Já vivendo nos Estados Unidos e em novo casamento, viu-se frente à dor da perda da filha Paula, aos 29 anos, vítima de uma gripe equivocadamente tratada com remédios letais para uma portadora de porfíria (doença auto-imune que determina um distúrbio na síntese da hemoglobina). Dessa história trágica e do relato da experiência cruel de uma mãe acompanhando a agonia da filha, nasceu o romance Paula, talvez o mais famoso livro da escritora.

No final da semana passada terminei de ler A Soma dos Dias, livro de Isabel Allende do qual gostaria de falar na minha crônica de hoje e sugerir a leitura. É um livro de memórias, onde a escritora entrega-se, apaixonadamente, à missão de contar para a filha, onde quer que viva seu espírito, o que aconteceu com toda a família a partir do momento em que Paula entrou em coma. E Isabel faz isso com avassaladora paixão, mas com um delicioso e bem-humorado relato dos casos e histórias de uma casa repleta dos netos que nascem, dos amigos que chegam, dos conflitos, dos encontros, dos amigos que partem, do amor maduro e diferente, embora não menos intenso e apaixonado, que ela passa a viver com Willie, o segundo marido e grande companheiro da guerreira latina.

Sou leitora voraz! Sempre tenho livros na fila e à espera das minhas mãos e olhos ávidos por histórias e viagens da alma. Mas gosto demais quando embarco num livro tal qual estivesse, criança ainda, ouvindo e construindo ao meu lado o cenário de uma história onde me reconheço personagem. Isabel Allende escreve para mim, para você, para quem é capaz de ver, sentir e lembrar, em cada trecho, dos sinais e cheiros que fazem parte da soma dos dias da vida de todos nós.

Me senti inteiramente retratada no livro quando Isabel, falando do pragmatismo de seu filho Nico, conta das três regras básicas que ele aplica nas suas relações humanas: nada é pessoal, cada um é responsável por seus sentimentos, e a vida não é justa. Agora, fale: você não conhece pessoas que são exatamente assim? Acho mesmo que existem mais homens do que mulheres com esse olhar sobre a vida. E muitas vezes, quando estou tomada pelo sentimento de indignação diante do que me aflige, chego a pensar que gostaria de um equilíbrio cartesiano desses. Mas não sou assim. E nem Isabel, que pertence àquela categoria, na qual me incluo, e para qual ela escreve: “Para mim tudo é pessoal, me sinto responsável pelos sentimentos dos outros, inclusive no caso de gente que mal conheço, e carrego mais de sessenta anos de frustração porque não posso aceitar que a vida seja injusta”.

E é a mesma mãe latina que conversa com a filha como se ela estivesse ali, sentada no sofá; que brinca e faz piada; que lembra dos tropeços inconfessáveis; dos amores errados e dos errados amores; que fala da agonia de vê-la inerte durante o coma...essa mesma mulher conta com diversão, picardia e prazer do grupo de cinco amigas com as quais forma o círculo das Irmãs da Perpétua Desordem, de quem Isabel fala assim: “agora sou uma delas...compartilhamos nossas vidas, meditamos, oramos pelos doentes e também trocamos maquiagem, bebemos champanhe, nos fartamos de bombons e, às vezes, vamos à ópera, porque a prática espiritual em seco me deprime um pouco”. E aí, Criativas, que tal???

Bom humor expresso também na curiosa e rica relação com os três netos, para quem Isabel fez cumprir a promessa de escrever para cada criança um livro de ficção e aventuras. Divertidíssima – pelo menos aos meus olhos – a maneira como ela conta a experiência de tentar encontrar dentro de si a criança que acreditava na fantasia mágica de monstros e dragões. Para tanto, e com a solidariedade total do marido, ela encara a aventura xamânica de sair do próprio corpo através do chá alucinógeno de ayahuasca, uma poção preparada com a planta trepadeira Banisteriopsis, também conhecida como Santo Daime.

É também com graça e humor refinado que ela fala da relação madura com o marido Willie, já bem perto dos setenta anos. Segundo a receita de Isabel, outono não é apenas a estação dourada do ano, mas a idade em que se deixa de ser jovem. E ela brinca dizendo que se antes tinha as antenas prontas para captar a energia masculina no ar, depois dos 60 as antenas enferrujaram e agora só o companheiro a atrai. Bem,,,,,o Antonio Banderas também. Em compensação, se o sexo não é mais tão intenso, não há nada mais intenso do que a intensidade daquele amor. Deliciosa sensação.

Enfim, “A Soma dos Dias“ é fundamentalmente uma história de amor. Pela pátria, pelos filhos, pela família, pela vida, pelos amores e pessoas que passam por nossas vidas. Gosto dessa ideia e penso um dia na história de amor que vou contar. Acho que nem vou precisar da experiência xamânica. Talvez da inspiração mediúnica que por vezes me toma e me leva pros lugares mais escondidos da alma e onde me surpreendo e me encontro. Lendo o livro que aqui recomendo, me vi várias vezes embarcando nessa deliciosa viagem. Chorei algumas vezes, mas ri divertidamente várias outras.

E porque escrever mantém minhas lembranças frescas, encerro por aqui lembrando uma frase que marca essa semana: das razões prá festejar, o amor será sempre o maior porquê.

(essa crônica foi originalmente publicada no meu outro blog, o Criative-se ( www.criativesse.blogspot.com), onde posto todas as sextas-feiras. Por sugestão da Janaína Amado, do blog Acreditando no Truque, vou trazer alguns desses textos para aqui também. Obrigado, Janaína!!!)



12 comentários:

Anônimo disse...

É sempre bom ler vc. É sempre bom reler vc e adorei a susgestão de colocar as crônicas de lá, aqui tb. Algumas vezes, dependendo do meu dia, venho aqui e fico lendo as crônicas antigas pq me faz um bem imenso e por alguns minutos, me desligo do mundo.
Um grande abraço.
Virginia.

Anônimo disse...

Que prazer te encontrar aqui de novo!
Este livro está na minha "coleção de livros para ler" esperando a sua vez, mas depois do seu texto penso que vou dar prioridade para ele, logo depois de terminar os 3 livros que estou lendo agora.

Lidiane Vasconcelos disse...

Veronica, que delícia de texto! Você é mesmo talentosíssima e sensível com as palavras, li do começo ao fim, me deliciei completamente. Quero agradecer a recomendação, parece ótima. :)

Ah! Sobre o que comentou no Bicha no post dos namorados, no teu caso você tem mais é que se acabar saindo para jantar com o amado, e compensar todo o tempo em que não pôde sair quando os filhotes eram pequenos. :)

Beijos, bonita!

Verônica Cobas disse...

Virgínia,

Seus comentários são sempre encantadores para mim. Gosto do jeito doce e da ideia de provocar admiração ou identificação. Que bom que assim o seja!!! Beijos mil!!!

Fátima,

Você vai adorar o livro. Sofrido em alguns momentos, mas absolutamente divertido em outros. Isabel Allende tem essa deliciosa caracteristica de ser emocional, mas entender que é preciso rir de si mesmo de vez em quando. Nesse momento estou lendo Paula, o romance que antecede à Soma dos Dias. Duro, sim. Mas apaixonante. Se você ainda não tiver o livro, entre hoje lá no Criative-se( www.criativesse.blogspot.com). Todos que comentarem no post de hoje estão concorrendo ao livro. Adoraria que você ganhasse!!

Lidiane,

É bom te ter por aqui também. Fico feliz com os elogios e quero que você curta muito a entrevista de hoje no Criative-se. Beijos.

Beta Bernardo disse...

Desde que li esse texto fiquei como vontade de ler o livro... vc tem esse poder, né??
Bjks

Monique Frebell disse...

Escrever é como falar consigo mesmo, é essa a impressão que tenho e quero, sempre!

Bjus!

=)

Kyria disse...

Verônica, é sempre uma delícia ler os seus posts, todos bem escritos e vibrantes então, sua recomendação é uma ordem para esta devoradora de bons livros, obrigada e beijos.

* Bela* disse...

"Escrever é mais que ofício, mais que prazer."

Escrever é colocar em letras o que muitas vezes as palavras não conseguem ser expressas por completo nos lábios.
É se entregar de corpo e alma pro momento que se idealiza ou se revive.
É dar asas a imaginção com os próprios pés nochão.
Escrever é mais que rabiscar, ler e digitar.
Escrever é viver, reviver e sonhar.

Amooo escrever!

BjinhusS =)

[Dá uma passadinha no meu blog!]

Lidiane Vasconcelos disse...

Oi, Verônica!
Também não tenho lá o estilo “mulherzinha” para muita coisa, sabe Verônica?! Mas para outras, me rendo. Acho que é uma forma de compensação por deixar de ser assim em muitos outros aspectos...ehehehehe

Caixas decoradas também são um fraco. Meu “canto da beleza” aqui em casa tem um toque “mulherzinha”. Meu porta- bijou me denuncia nesse sentido, e também uma bibelozinha que fica por lá deixa tudo beeeeeeem feminino. Mas é bom exercitar esse lado, eu gosto. :D

Beijos

Luma Rosa disse...

Uau!! Você gosta mesmo de Isabel Allende e eu li alguns dos livros, o primeiro que li “La casa de los espiritus” foi mais pelo teor histórico e infelizmente este que acabou de ler ainda não li, está na fila, depois falo o que achei, mas depois do seu relato, acho que não vou respeitar a fila (rs*). No TED e no Youtube tem uns videos com entrevistas e conferências, geniais! E ano passado ela deu uma excelente palestra sobre o tema de direitos humanos das mulheres:
http://www.caterina.net/archive/001101.html

E fiz uma homenagem para a poesia dela, no blogue tempos atrás, se interessar! Texto curtinho! (rs*) http://migre.me/1LxW

Beijus,

Janaina Amado disse...

Obrigada a você, Verônica. Também gosto muito da Isabel Allende, mas ainda não li "A Soma dos Dias" - será minha próxima leitura!

Ruberto Palazo disse...

Confesso que nunca li nada de Isabel, mas seu relato realmente me tocou... sou adepto de leituras diversas, contos policiais, fantasiosos, engraçados... mas os que mais me chamam atenção e prendem a mesma são aqueles que me tocam, que se aproximam do dia a dia humano, dos sentimentos, das simples coisas da vida... e seu texto sobre Isabel, me chamou atençao..

Acho que ISabel será uma das minhas proximas leituras...

OBrigado...rss

Beijos